quinta-feira, 15 de março de 2012

Clotilde


Clotilde estava sentada na soleira da porta. A porta era da casa de seu namorado, que havia conhecido há algumas horas na mesa de um bar. O bar era daqueles bem botequeiros que acumula gente velha e depressiva. Ela estava depressiva naquele dia. Chegou ao bar para pedir uma pinga, daquelas que descem derretendo todos os órgãos. Pediu a pinga, na esperança de derreter seu coração. No bar tinha uma mesa. Na mesa tinha duas cadeiras, uma delas estava ocupada. A cadeira ocupada era a de um rapaz que parecia depressivo. Depressão deveria ser o nome do bar. O dono do bar, de nome Golias, tinha cara de sapato velho passado na cândida. Ele sorria, um sorriso triste, de quem já não consegue desfazer a máscara, parecia que se deixasse de sorrir ficaria triste, apesar de seu sorriso ser triste. A pinga veio embalada numa tristeza sorridente e desceu num gole de vontade de morrer. A cadeira da mesa do lado de fora, sim, a mesa estava do lado de fora, e a cadeira ocupada ainda tinha uma companheira vazia.  A cadeira vazia! Clotilde sentou-se. Não na cadeira vazia, mas não soleira do bar. Não, num banco, em frente ao balcão. Clotilde se sentou em frente ao balcão. Pediu mais uma. Desceu mais uma, sem sentir nada derreter, seu organismo já estava dormente. O olho bambeou a cadeira vazia, o corpo levantou do banco do balcão e foi para a mesa com as duas cadeiras. Pediu para sentar. Sentou. Pediu, porém não obteve resposta, mas sentou. O rapaz, bêbado e largado na cadeira, tentou focalizar a imagem de Clotilde. Eram gêmeas. Estavam sorrindo tristemente. Clotilde tentou pensar em algo para dizer, mas não disse. Não veio nada. Veio, veio uma ânsia de vômito, um delírio do corpo de querer sumir dali. Um abismo se aproximou da mesa e então, eles começaram a cair. O rapaz ria muito alto durante a queda e Clotilde pôde perceber que ele não tinha um dos dentes da frente. De repente a boca do rapaz estava completamente ensangüentada, e ela não conseguia pensar de onde surgira tanto sangue. Ela não conseguia mais pensar. A queda era longa demais, a mesa estava intacta, apesar de estar caindo.  Um sapato velho voava do seu lado. Começou a engraxar a mesa com cândida. A mesa começou a derreter, como os seus órgãos. Caia agora sozinha, numa escuridão abismal. Sentiu uma imensa dor nas costas, tinha sido apunhalada. Um caco de vidro atravessou o seu peito. Um líquido verde começou a expurgar. Era catarro. Eram os seus órgãos líquidos vazando pelo único lugar não congestionado de seu corpo. Todos os seus orifícios estavam tapados com algodão. Começou a arrancar o algodão e a comê-lo. Era doce. Parecia nuvem. Tirou um cigarro do bolso da meia do pé, sua meia tinha um bolso onde guardava o cigarro, só agora se dera conta disso. Pôs o cigarro na boca e percebeu que já estava aceso. Na primeira tragada sentiu seu corpo relaxar, como se flutuasse agora. Não estava caindo mais. Flutuava de olhos fechados, não tinha percebido que fechara os olhos. Resolveu abri-los. Ao seu lado, deitado na cama, estava o cara da cadeira ocupada na mesa do bar. A boca limpa. Os dentes intactos. No chão, um sapato. Apagou o cigarro no sapato e se levantou. Não era mais abismo. Era uma casa. Uma casa desconhecida. Estava nua e fizera sexo com o cara da cadeira. Uma sensação de alegria, de paixão por aquela pessoa deitada tomou o seu corpo vazio. Preencheu os vãos entre os ossos e subiu passando como ar pelos pulmões e saindo como água pelos olhos. Chorava. Porque aquilo era amor. Delirava por aquilo que ainda nem sabia o nome, mas resolveu chamá-lo de amor. Seu amor ainda dormia e quando acordasse a encontraria, sentada na soleira da porta, fumando um cigarro com os pés no chão e a pinga na cabeça. Ele encontraria apenas ela. Clotilde.



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