Clotilde estava sentada na soleira
da porta. A porta era da casa de seu namorado, que havia conhecido há algumas
horas na mesa de um bar. O bar era daqueles bem botequeiros que acumula gente
velha e depressiva. Ela estava depressiva naquele dia. Chegou ao bar para pedir
uma pinga, daquelas que descem derretendo todos os órgãos. Pediu a pinga, na
esperança de derreter seu coração. No bar tinha uma mesa. Na mesa tinha duas
cadeiras, uma delas estava ocupada. A cadeira ocupada era a de um rapaz que
parecia depressivo. Depressão deveria ser o nome do bar. O dono do bar, de nome
Golias, tinha cara de sapato velho passado na cândida. Ele sorria, um sorriso
triste, de quem já não consegue desfazer a máscara, parecia que se deixasse de
sorrir ficaria triste, apesar de seu sorriso ser triste. A pinga veio embalada
numa tristeza sorridente e desceu num gole de vontade de morrer. A cadeira da
mesa do lado de fora, sim, a mesa estava do lado de fora, e a cadeira ocupada
ainda tinha uma companheira vazia. A
cadeira vazia! Clotilde sentou-se. Não na cadeira vazia, mas não soleira do
bar. Não, num banco, em frente ao balcão. Clotilde se sentou em frente ao
balcão. Pediu mais uma. Desceu mais uma, sem sentir nada derreter, seu
organismo já estava dormente. O olho bambeou a cadeira vazia, o corpo levantou
do banco do balcão e foi para a mesa com as duas cadeiras. Pediu para sentar.
Sentou. Pediu, porém não obteve resposta, mas sentou. O rapaz, bêbado e largado
na cadeira, tentou focalizar a imagem de Clotilde. Eram gêmeas. Estavam
sorrindo tristemente. Clotilde tentou pensar em algo para dizer, mas não disse.
Não veio nada. Veio, veio uma ânsia de vômito, um delírio do corpo de querer
sumir dali. Um abismo se aproximou da mesa e então, eles começaram a cair. O
rapaz ria muito alto durante a queda e Clotilde pôde perceber que ele não tinha
um dos dentes da frente. De repente a boca do rapaz estava completamente
ensangüentada, e ela não conseguia pensar de onde surgira tanto sangue. Ela não
conseguia mais pensar. A queda era longa demais, a mesa estava intacta, apesar
de estar caindo. Um sapato velho voava
do seu lado. Começou a engraxar a mesa com cândida. A mesa começou a derreter,
como os seus órgãos. Caia agora sozinha, numa escuridão abismal. Sentiu uma
imensa dor nas costas, tinha sido apunhalada. Um caco de vidro atravessou o seu
peito. Um líquido verde começou a expurgar. Era catarro. Eram os seus órgãos
líquidos vazando pelo único lugar não congestionado de seu corpo. Todos os seus
orifícios estavam tapados com algodão. Começou a arrancar o algodão e a
comê-lo. Era doce. Parecia nuvem. Tirou um cigarro do bolso da meia do pé, sua
meia tinha um bolso onde guardava o cigarro, só agora se dera conta disso. Pôs
o cigarro na boca e percebeu que já estava aceso. Na primeira tragada sentiu
seu corpo relaxar, como se flutuasse agora. Não estava caindo mais. Flutuava de
olhos fechados, não tinha percebido que fechara os olhos. Resolveu abri-los. Ao
seu lado, deitado na cama, estava o cara da cadeira ocupada na mesa do bar. A
boca limpa. Os dentes intactos. No chão, um sapato. Apagou o cigarro no sapato
e se levantou. Não era mais abismo. Era uma casa. Uma casa desconhecida. Estava
nua e fizera sexo com o cara da cadeira. Uma sensação de alegria, de paixão por
aquela pessoa deitada tomou o seu corpo vazio. Preencheu os vãos entre os ossos
e subiu passando como ar pelos pulmões e saindo como água pelos olhos. Chorava.
Porque aquilo era amor. Delirava por aquilo que ainda nem sabia o nome, mas
resolveu chamá-lo de amor. Seu amor ainda dormia e quando acordasse a
encontraria, sentada na soleira da porta, fumando um cigarro com os pés no chão
e a pinga na cabeça. Ele encontraria apenas ela. Clotilde.
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